quarta-feira, 2 de abril de 2008

ROBERTO EVANGELISTA: PURA MAGIA





Roberto Evangelista

Por Paulo Herkenhoff




Travessias e Dissoluç§es




Essa ë uma arte de exaustâo e vazios. A instalaçâo Ritos de Passagem de Roberto Evangelista reöne mil caixas de sapatos, dois mil sapatos gastos e cinco pedras de lioz retiradas de uma calçada da cidade de Manaus. As pedras, extraìdas do tecido urbano, sâo uma cr–nica do colonialismo. Porque levavam mais do que traziam, os navios de arribaçâo colonial chegariam vazios se nâo trouxessem pedras em seus por§es. Flutuariam sem lastro. Traziam pedras cortadas de Portugal, usadas para pavimentar as ruas das cidades amaz–nicas que se modernizavam no boom da borracha. Essas pedras tornavam-se uma 'correçâo' da natureza amaz–nica, regiâo desprovida de pedras duras. Cinco daquelas pedras foram desencravadas de sua imobilidade, na qual condensam sua histria de corpo que se molda e esculpe com passos em um sëculo de fricçâo entre calçado e calçada no movimento da rua. O paradoxo perverso ë que, feitos de borracha sintëtica, esses sapatos, que hoje consomem as pedras, tambëm funcionam como ìcones da queda da fastigiosa economia extrativista da borracha. O processo seria entâo uma alegoria da idëia ps-moderna de desapariçâo do eu.A pedra de cantaria introduz a noçâo de ausència (a idëia de uma falta na natureza) e de distanciamento - a pavimentaçâo da cidade moderna calçada ë modo de diferenciaçâo entre espaço natural e espaço urbano, espelho de diferenças entre cultura nativa e cultura ocidental demarcadas no processo de colonizaçâo. As pedras cortadas - natureza racionalizada - ocultam o fato de que a cultura tambëm se molda na relaçâo com o meio natural. Essas pedras-lastro apontam para as leis da fìsica como emblemas da necessidade de equilìbro na economia de trocas, onde caixas de sapato sâo peso morto ou peso nenhum. Deslocados, aqueles grupos de objetos (pedras, sapatos e caixas) produzem um estranhamento.Era sapato e agora ë lixo. Sapatos gastam pedras. As caixas exibem seu vazio como se estivessem localizadas num lugar entre esses dois pontos de dispersâo de energia por fricçâo. Sâo signos exaustos no consumo. Jž nâo mais seriam meio apto para a produçâo. Encontraram no uso o limite de esgotamento de sua funçâo como valor de troca. Ao comentar Mater Dolorosa (1976, um cubo de acrìlico transparente com restos carbonizados de žrvores sobre um quadrilžtero de areia branca), de Roberto Evangelista1, o escritor Mžrcio Souza fala de "ruìnas das culturas originžrias, assaltadas e massacradas; ruìnas das impossibilidades da civilizaçâo ocidental; ruìnas da natureza mal compreendida, uma paisagem de destroços"2. Nesse 'péntano da aculturaçâo' ocorre o duplo testemunho da constituiçâo do sujeito-criador, o artista da tradiçâo humanista-moderno, e da iminència de sua dissoluçâo antes que (ou sem que) a modernidade ocidental tenha imposto plenamente sua hegemonia na regiâo. Aqueles objetos incuos, extraìdos de sua utilidade cotidiana, sâo repotencializados como signos. Vè-se Ritos de Passagem como uma paisagem de ruìnas do consumo. A obra desoculta a öltima possibilidade de valor produtivo para esses signos no processo de circulaçâo simblica: articular uma voz coesiva num territrio de esquecimento.A calçada, como parte da rua, diz o artista, ë o lugar coletivo de um rito de travessia dižrio e constante. A vida flui como um rio, potente metžfora do tempo3. A instalaçâo poderia ser um anti-rio. Cada pedra seria a imobilidade registrando as vidas que por ela transitam. Esse ë o punctum no fluxo do tempo. O princìpio do tempo, instituìdo pelo sujeito, serž vivencial, dissolvendo a noçâo de manufatura e autoria. Na instalaçâo Mater Dolorosa in Memoriam II (da Criaçâo e Sobrevivència das Formas), de 1982, centenas de cuias flutuam num igarapë. Sâo organizadas dentro de certas formas. A obra ë decurso e consumaçâo do tempo. Trabalhando sob a orientaçâo de um pajë, Evangelista investiga o pensamento cosmog–nico e a resistència da forma natural, primeira e simblica. O artista busca uma medida essencial, "sem influència, sem estrangeiros e colonizadores", afirma.A obra de Roberto Evangelista politiza o olhar da Amaz–nia no horizonte da sobrevivència. Diante de uma natureza singular e de sua riqueza cultural, na problematizaçâo da Amaz–nia prevalecem abordagens fenomènicas (o grau zero da natureza na obra de Waltërcio Caldas) e polìtico-antropolgicas (a noçâo de voz do gueto para Cildo Meireles e paìs submerso de Emmanuel Nassar). Evangelista opera sobre a totalidade e o contìnuo de devastaç§es das queimadas, massacres de ìndios e de populaç§es caboclas, falència da cultura ocidental. No entanto, essa 'paisagem de destroços' nâo ë a cena da melancolia, jž que a posiçâo de Evangelista ë estabelecer uma fissura na histria como processo de abandono e agenciamento de recalques que (auto)vitima a Amaz–nia. Sua perspectiva fenomènica, sem idealizaç§es, ë impregnada desse inescapžvel pathos. Ns vivemos com drama e aprendemos com a tragëdia, diz o artista.1 Essa obra precede em dois anos o Manifesto do Rio Negro (1978) de Pierre Restany e Frans Krajcberg e estž adiante do processo internacional de discussâo da devastaçâo da Amaz–nia, que s se amplia depois da falència de grandes projetos agroindustriais de companhias multinacionais.2 "Um paìs esquecido dentro do paìs", in Visâo, 29 de maio de 1978.3 Como nos rios de cuias das instalaç§es Mater Dolorosa in Memoriam II (Sobre a Criaçâo e Sobrevivència das Formas) e Resgate (1992).

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