Viviane Matesco
Em 1966, Hélio Oiticica apresentou um trabalho, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que explicita suas propostas de Antiarte e sintetiza seu percurso anterior: um jogo de bilhar. A parede vermelha, o verde da mesa e as camisas dos jogadores permitiam "vir à tona toda a plasticidade desse jogo único-plasticidade da própria ação-cor-ambiente: todos se divertem com o bilhar e imergem no ambiente criado".1 A proposta Sala de bilhar-nascida de uma observação de Mário Pedrosa aproximando as sensações causadas pelos Núcleos e Bólides ao impacto das cores da tela Café noturno de Van Gogh-enfatiza o aspecto do prazer no jogo e redefine a arte como uma atividade lúdica, aberta à interferência do público e ao imprevisível2.A produção de Oiticica, a partir dos Parangolés, é nitidamente marcada pela busca para integrar a arte na experiência cotidiana. É a recusa do amedrontamento perante um mito. A proposta da "Antiarte" consiste em sensibilizar o cotidiano por meio da repotencialização do "coeficiente" criativo do indivíduo. O artista torna-se agora o motivador da criação, que só se realiza com a participação do "ator/espectador". Ele reúne elementos e recursos diversos como cor, estrutura, música, dança, palavra e fotografia, no que define como "totalidade-obra". É por meio da experiência com a cor que Oiticica rejeita a dicotomia objeto/sujeito. Funda a obra na própria relação com o sujeito que, ao realizá-la, efetiva uma operação que o leva a si mesmo, a um autoconhecimento. Dos primeiros trabalhos concretos às propostas de Antiarte, a cor é um eixo condutor em sua trajetória, levando-o ao espaço real e a superar a distância entre arte e vida.Aluno de Ivan Serpa, Hélio liga-se inicialmente ao concretismo, vertente construtiva da arte que marcaria profundamente seus trabalhos iniciais. A tradição concretista postulava a redução da cor: ela se tornava apenas um elemento da dinâmica visual que, ao interagir com um outro, convertia-se num feixe ótico; subjugada à forma, não deveria demonstrar nenhuma referência pessoal que alterasse os jogos retinianos. Os guaches de Oiticica desse período, planos saturados de cor, constituem um estudo do vocabulário formal concretista, mas não apresentam a rigidez de suas formas seriadas. Uma relativa autonomia da cor, já prenunciada nesses primeiros guaches, afirma-se nos seus trabalhos subseqüentes. Os Metaesquemas (1957-58) indicam pelo próprio nome sua função: são esquemas compostos pela relação forma e fundo, que adquirem, pela cor, uma instabilidade gráfica. Em vez de uma estrutura hierarquizada do espaço pictórico, significam uma dinâmica que questiona a própria bidimensionalidade. A cor libera a forma do suporte, salta para o espaço, ganha o mundo.O aprofundamento da questão da cor, da luz, o desejo de explorar sua ação, sua potência lógica, levaram Oiticica fatalmente à ruptura do conceito tradicional de quadro. Nos Monocromáticos ou Invenções (1958-59), desaparece a diferença entre pintura e suporte, o plano torna-se elemento ativo. São placas quadradas (30cm de lado) que recebem várias camadas de tinta e deixam aparente essa superposição. São dispostas na parede de maneira inusitada, uma vez que não são centradas. A cor age, agora, duplamente: em relação a si mesma, como se fosse uma pulsação e em relação à parede. Os Monocromáticos anunciam, por meio de sua dinâmica estrutural, uma tendência ao espaço tridimensional e representam a transição da pintura na tela para a fase em que a cor, confundindo-se com a própria estrutura, passa a agir livremente no ambiente. A utilização da monocromia enfatiza e isola a cor em um momento único de ação. A luminosidade, a vibração de suas ondas, constitui a sua temporalidade. Daí a preferência por cores mais abertas à luz como branco, amarelo, laranja e vermelho. Sobre as cores-luz, escreve Oiticica: "à cor pigmentar, material e opaca em si, procuro dar o sentido da luz [. . .] é preciso separar as cores mais abertas à luz, como privilegiadas para essa experiência"3. Para se manifestar, a "cor-luz" necessita de uma forma material e assim determina sua própria estrutura. Essa concepção nasce junto com a idéia da cor: não há mais um suporte a ser pintado, a estrutura torna-se o "corpo da cor".Os Bilaterais e os Relevos espaciais (1959) são superfícies de madeira pintadas, suspensas por fios presos ao teto. "Não objetos"4, inserem-se na experiência de desintegração do quadro realizada pelo grupo neoconcreto e, mais especificamente, significam um processo paralelo àquele realizado por Lygia Clark na série dos Casulos. Os neoconcretos pretendiam realizar uma revisão crítica do construtivismo; partindo da convicção básica de que a obra de arte não é uma ilustração de conceitos apriorísticos, objetivam uma redução do pragmatismo concreto mediante o resgate da expressão e da subjetividade presentes em Malevitch e Mondrian. Deslocam o eixo das preocupações teóricas de Pierce para a filosofia de Merleau-Ponty e Suzane Langer. Buscam a percepção estética por meio de uma abordagem fenomenológica em que a relação envolve o corpo.Os Núcleos (1960-63) consolidam as principais questões levantadas pelos Bilaterais e Relevos espaciais; ampliam o problema da espacialização da cor e conceitos relativos à "estrura-cor" ativa. São placas de madeira pintadas, com dupla superfície, presas ao teto por um suporte de madeira. Nos primeiros Núcleos, não havia a possibilidade de movimentar as placas; aos poucos elas vão ficando mais soltas e incorporam o espaço exterior. A exploração é condição para o conhecimento desses trabalhos: para desvendá-los, o sujeito deve investigar suas potencialidades, suas várias facetas. A disposição das placas cria espaços virtuais, favorece a tensão entre luz e sombra, o jogo interior/exterior; elas são pintadas em tons muito próximos, cuja variação segue um ritmo elaborado. A respeito dessa estruturação, Oiticica afirma: "o desenvolvimento nuclear que procuro não é a tentativa de amenizar os contrastes, mas de movimentar virtualmente a cor, em sua estrutura mesma [. . .] É a volta ao núcleo da cor, que começa na procura da sua luminosidade intrínseca, virtual, interior, até o seu movimento mais estático para a duração".5 O movimento virtual da cor não significa somente fazer uso de suas relações físicas, mas a busca de uma dimensão de significação. A questão apresenta um aspecto duplo: há um sentido arquitetônico em que a estrutura incorpora o espaço. Aqui vale a relação da cor entre as placas e o espaço que as circunda. O outro aspecto relaciona-se à ação da cor em relação a si mesma, como uma espécie de movimento infinito de interiorização e expansão. O espaço construído pela vibração das ondas luminosas remete à noção de espaço contínuo desenvolvida por Malevitch6. A impregnação da cor introduz a noção de campo. Essa experiência estética funda a proposição do artista (obra) e pressupõe uma compreensão fenomenológica do tempo: ele é vivido, é duração, sugere uma abordagem subjetiva. O sujeito reconstitui o processo de produção do artista, "como concreção do próprio impulso interior de que a obra nasceu. O diálogo que se estabelece entre a obra e o público realiza-se no campo das vivências interiores, a obra fala à intimidade no homem e não apenas à sua exterioridade sensorial".7Nos Bilaterais, Relevos e Núcleos, a participação do espectador ocorre pela vivência visual da cor; eles representam um desenvolvimento das questões postas pelos Metaesquemas. A partir dos Penetráveis, Bólides e Parangolés, essa dimensão vai ser radicalizada pela manipulação, movimento e utilização do plurissensorial. Os Penetráveis (1960) inauguram o projeto das manifestações ambientais e sugerem uma integração da cor na experiência cotidiana do indivíduo. São construções em madeira em que se cumpre um percurso. Com placas móveis, permitem articulações diversas: cada recanto deve ser explorado e não há como apreender tudo simultaneamente. O indivíduo caminha sobre areia, água, pedra; toca objetos, escuta ruídos, recebe uma série de estímulos dirigidos aos sentidos. A estrutura-cor adquire literalmente um sentido arquitetônico e o espectador transforma-se no "descobridor da obra". Nos Bólides (1963), a proposta gira em torno da concentração da cor, ao contrário da explosão típica dos Núcleos. A cor se materializa, ganha um corpo, uma tatilidade. São recipientes de diversas modalidades: madeira, vidro, cimento, tecido, lata, plástico, bacias, sacos. Contêm materiais como areia, pedra, carvão, brita, conchinhas do mar e terra apresentados como cor em estado pigmentar. Dividem-se basicamente em dois tipos: o bólide-vidro e o bólide-caixa. O primeiro é uma peça de vidro transparente com massa-pigmento: sobressai o sentido de explorar, manipular. Há um sentido lúdico e uma descoberta intelectual, conseqüências do desvendamento das possibilidades da obra. Os bólides-caixa seriam "arquiteturas miniaturizadas", nas quais as cores, nem sempre vistas claramente, escondem-se e criam espaços através de reflexos. A mão experimenta o espaço; nas gavetas encontra terra ou pigmento puro, pode tocá-la, sentir a textura, o peso e o aroma. A percepção cromática desvencilha-se do monopólio visual, requer o corpo do indivíduo, instaura uma nova ordem: a fruição como proposta de arte.
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